Redação Pragmatismo
Homofobia 27/Mar/2015 às 15:42 COMENTÁRIOS
Homofobia

Repórter dá bronca 'contra a homofobia' em entrevistado

Publicado em 27 Mar, 2015 às 15h42

Entenda por que foi importante o puxão de orelha que a repórter da ESPN, Gabriela Moreira, deu em um torcedor do Palmeiras durante uma entrevista

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Ubiratan Leal, Trivela

Gabriela Moreira é uma das melhores repórteres esportivas da TV brasileira. E não é uma das melhores repórteres mulheres, é uma das melhores repórteres no geral. Quando fazia parte da equipe carioca da ESPN Brasil, revelou várias irregularidades na organização da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Ela já merecia reconhecimento do público por isso, mas muita gente só prestou atenção a seu trabalho nesta quarta, por causa da cena abaixo.

Agora temos mais um bom motivo para reconhecer o seu trabalho (vídeo abaixo). A atitude da repórter foi importante, ainda mais em uma sociedade que tem dificuldade em entender os efeitos de pequenas ações na criação de um ambiente de homofobia muito mais amplo e perigoso. Muita gente não entende qual o problema da “brincadeira” do torcedor palmeirense e talvez esteja praguejando contra a jornalista por moralismo exagerado.

Minutos depois, dentro do Allianz Parque, a torcida verde usou o mesmo adjetivo do entrevistado do vídeo acima sempre que Rogério Ceni ia chutar a bola. Uma atitude que se tornou comum em estádios brasileiros (e que já fez o STJD ameaçar o Corinthians de punição). Uma atitude que pode ter tirado um pouco da alegria de todos os palmeirenses gays que têm motivos para se sentir atingidos e deixaram de ter a felicidade completa de uma vitória contundente contra um grande rival.

Leia abaixo um texto da Trivela, publicado há 1 ano, explicando por que a sociedade precisa tomar cuidado com essa homofobia que parece inocente, mas não é:

por Leandro Beguoci

Os torcedores do Corinthians que chamaram Rogério Ceni de bicha, sistematicamente, provavelmente não sabem. Mas o ato foi tão ruim para eles quanto para o rival são-paulino.

Houve uma época em que os jogadores do Ajax eram recebidos pelos rivais ao som de vazamentos de gás. Os rivais do time de Amsterdã imitavam o som com a boca e tentavam transformar o estádio numa gigantesca câmara de extermínio, de mentirinha. A razão era simples e horrível. Ao longo dos anos, os judeus holandeses se identificaram com a equipe. Até hoje, alguns dos seus torcedores mais ardorosos, mesmo quando não têm nenhuma relação com o judaísmo, se identificam como “Os Judeus”. Grosso modo, é um equivalente aos fiéis corintianos. Mesmo um torcedor ateu ou agnóstico do time do Parque São Jorge se identifica como fiel – inclusive o que só acredita em Deus ou em alguma energia durante pouquíssimos segundos de uma final de campeonato.

Os rivais do Ajax imitavam o som de gás porque, como quase todo mundo sabe, aproximadamente 6 milhões de judeus foram exterminados na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Muitos deles foram envenenados e morreram em câmaras de gás. A Holanda foi um dos países mais afetados pelo extermínio. Antes da invasão alemã e do colaboracionismo de autoridades do país, cerca de 155 mil judeus viviam por lá. Depois da guerra, só restavam 14,3 mil. Muitos foram mortos em Amsterdam. Outros tiveram de enfrentar longas jornadas de trem até os campos de concentração. Uma dessas pessoas foi a menina Anne Frank, cujo diário se tornou um dos testemunhos mais fortes e dolorosos de um período medonho da história. Embora ela fosse alemã, a família vivia na Holanda.

Apesar dessa história horrível, ainda hoje alguns rivais do Ajax cantam “Lá vai o trem do Ajax para Auschwitz”, em referência a um dos maiores campos de extermínio da história. E isso acontece mesmo na Holanda, um país liberal e tolerante. Isso mostra que algumas questões continuam mal resolvidas. O antissemitismo, afinal, continua existindo, embora mais tímido.

E isso, claro, não acontece só na Holanda. Porque isso é um padrão: transformar uma das características de uma pessoa em uma ofensa contra essa mesma pessoa. O xingamento , frequentemente repetido, coloca o ofendido em uma posição inferior no mundo. De tanto ouvir frases sobre como os judeus são ruins, algumas pessoas se sentem confortáveis em repetir o som que matou milhões de pessoas para os descendentes dessas mesmas pessoas. O adversário vira inimigo. Ele perde uma porção da humanidade simplesmente porque é diferente de mim. E, ao perder uma parte da humanidade, ele me autoriza a fazer o que eu quiser com ele.

Ou, de uma forma muito esquemática: essa pessoa é judia e torcedora do Ajax. Eu não sou judeu e sou rival do Ajax. Portanto, não ser judeu e não torcer para o Ajax me colocam numa posição melhor, superior. Eu posso subjugá-la, mesmo que seja com palavras. A rivalidade me autoriza a humilhá-la, a fazê-la sofrer. Eu sei que não é tão direto assim. A vida é mais sutil. Talvez quem xingue nem pense nessas coisas, mas o efeito final é o mesmo. Um xingamento é uma humilhação porque o xingamento cria uma escala de diferença. O ofendido se torna inferior ao ofensor. Faça um exercício simples: pense no quanto você se sentiu humilhado quando foi ofendido na escola porque era gordo, porque era magro, porque tinha dente torto. Pense no que você sentiu. Pense em como você se sentiu à parte do restante dos seus colegas. E pense que, de repente, 20, 30 mil pessoas começam a cantar em todos os jogos “gordo nojento, gordo suado, gordo escroto” para ofender um rival do time adversário.

Era preciso fazer essa introdução para falar sobre racismo e homofobia nos estádios do Brasil e da América Latina. Em cada país, a intolerância e o ódio se manifestam de alguma forma. Não nascem do nada. Têm causas, têm raízes que às vezes nem nos damos conta, e acabam ganhando expressão no futebol. O professor Hilário Franco Júnior, no fantástico livro “A Dança dos Deuses”, explicou muito melhor do que eu como a violência, física e verbal nos estádios, mudou ao longo dos anos, seguindo algo nefasto que acontecia do lado de fora dos gramados. Ele também mostra que as coisas mudam, e continuam mudando. Só que, hoje, nós gostamos de dizer que chamar um jogador de bicha sempre foi assim, sempre será assim e nunca mudará. Mas é preciso pensar. Por que bicha é xingamento? Por que algumas pessoas insistem em comparar negros a macacos? O que transformar isso em ofensa diz sobre nós mesmos?

O grito de “bicha, bicha, bicha”, contra o principal jogador da equipe rival, contra o atleta mais controverso do seu adversário, em um estádio lotado, só esquenta ainda mais esse caldo de ódio – mas tão confortável para gente violenta e mesquinha

A comparação entre negros e macacos é mais simples, sem sutilezas. A gente pode não se dar conta disso, mas estamos falando que a outra pessoa é um bicho. Um animal. Pode parecer gozação de bar, pode parecer inofensivo, mas foi exatamente isso, historicamente, que justificou a escravidão e a morte de milhões de pessoas. Afinal, como você escraviza alguém? Rebaixando essa pessoa à condição de coisa, de besta. Nos EUA e no Brasil, isso foi claro. Negro igual a bicho e bicho igual a uma propriedade que eu posso dispor como eu quiser. Mas também aconteceu na África e no Oriente Médio. Para justificar a escravidão de pessoas que viviam no mesmo lugar, às vezes da mesma cor, era preciso transformar essas pessoas em rivais de ódio, em rivais torpes, e puni-los com a perda eterna de liberdade. É preciso tirar dessa pessoa aquilo que a faz igual a mim.

Ao longo dos anos, felizmente, estamos aprendendo que negro não é coisa, não é bicho e tem os mesmos direitos que qualquer outra pessoa. O Brasil até conseguiu dar grandes passos, diminuindo drasticamente o ódio, mas ainda não conseguiu dar igualdade de oportunidades às pessoas. Alguns estudos recentes mostram que descendentes de escravos, sem políticas públicas claras, podem levar décadas para chegar ao que hoje chamamos de classe média alta. Afinal, seus pais, avós e bisavós partiram de menos do que nada. Enquanto não alcançarmos essa igualdade de condições, talvez a gente ainda conviva com casos de racismo abjetos. Porque os negros, enquanto estiverem nos trabalhos mais mal pagos, vão continuar sendo vistos como preguiçosos, indolentes, que não se esforçam suficientemente. Como pessoas, no final das contas, piores do que aquelas pessoas que nós achamos que somos: trabalhadores, esforçados, dedicados. Mas nós partimos de outro lugar. E, infelizmente, a cor da pele foi critério durante muito tempo para contratar alguém ou para promover alguém em uma empresa. A gente gostaria que fosse diferente? Claro que sim. Mas as coisas são como são. Ao tratar o racismo como caso menor, nós compactuamos com uma longa história de sofrimento e humilhação.

E então chegamos à homofobia nos estádios. Eu sei que muitas pessoas que brincam com os colegas de arquibancada, chamando uns aos outros de bichas, bichinhas, e aí, seu veado, não vão bater em homossexuais nas ruas. Muitas delas têm parentes gays, amigos gays. E eu sei que justamente por isso muitas ficam ofendidas com a patrulha ostensiva. Por isso é preciso colocar as coisas em perspectiva. Muitas pessoas estão fazendo as coisas sem pensar.

Muitos de nós estamos acostumados a usar homossexualidade como xingamento, por muitas e muitas razões históricas que não caberiam neste texto. Enfim. Isso é tão natural, tão rotineiro, que nem nos damos conta de que estamos repetindo, como se fosse banal, o mesmo esquema que autoriza holandeses antissemitas a imitar uma câmara de gás ou racistas a insistir em bestializar os negros. Estamos transformando uma característica de uma pessoa em ofensa. Estamos dizendo que ser gay é uma coisa tão ruim que chega a ofender e machucar mesmo quem não é gay. Mas, sinceramente: qual é o problema em ser gay?

Nós não sabemos ao certo por que algumas pessoas são gays. Também não sabemos por que algumas pessoas são negras. Ou por que algumas pessoas são canhotas. Nós não sabemos um monte de coisas, mas aprendemos a odiar algumas delas s sabe-se lá por qual razão. Canhotos, por exemplo, foram estigmatizados durante décadas e apanhavam até aprender a escrever com a mão direita. Ser canhoto, na lenda popular, significava ser influenciado pelo demônio. E isso atingia ricos e pobres. O rei George VI, da Inglaterra, é um dos canhotos que apanharam e sofreram até que aprendessem a escrever apenas com a mão direita. O ódio surge por razões difíceis de explicar.

Só que as pessoas são o que são. Desde que isso não mate outra pessoa, não viole aquilo que se costumou chamar de direitos fundamentais, não há nada que possamos fazer. Ser gay, ser negro ou ser canhoto são fatos da vida. São características que não violam o direito de outras pessoas. Um assassino pode te tirar a vida. O que um gay tira de você? Nada. A pessoa é o que é e ninguém tem nada a ver com o que ela faz ou deixa de fazer.

Ao usar gay como xingamento em um estádio, nós estamos fazendo aquilo que não gostamos que seja feito conosco. Estamos dizendo, mesmo sem perceber, sem nos darmos conta, que as pessoas gays são inferiores. Não gostamos de ser patrulhados, intimidados ou ofendidos. Mas estamos patrulhando, intimidando e ofendendo pessoas iguais a nós ao transformar homossexualidade em xingamento. Isso não faz parte da graça do futebol. Isso só mostra sobre o quanto não pensamos nas consequências das nossas palavras e das nossas ações. Nós agimos sem refletir e nos comportamos como uma manada descontrolada, que não pensa nas consequências das suas ações.

Portanto, quando uma torcida imensamente popular, como a do Corinthians, repete como um mantra “bicha, bicha, bicha” em um estádio, ela está reforçando a ideia de que ser gay é ruim. Uma torcida que luta contra preconceitos, que passou anos tendo de escutar “silêncio na favela”, está reproduzindo em outra torcida a violência que costumava sofrer. E isso não é engraçado. Isso não é parte do esporte. E, um dia, pode se voltar contra os próprios corintianos. Contra qualquer pessoa, na verdade.

Estamos transformando uma característica de uma pessoa em ofensa. Estamos dizendo que ser gay é uma coisa tão ruim que chega a ofender e machucar mesmo quem não é gay. Mas, sinceramente: qual é o problema em ser gay?

Não é de hoje que a torcida do Corinthians diz “vai pra cima delas, Timão”. Isso já era ofensivo, mas diluído num “delas” maroto. Mas, ao chamar o goleiro rival de bicha, sistematicamente, usando a palavra que muitos intolerantes usam contra as suas vítimas, a torcida do Corinthians, mesmo sem se dar conta disso, está dizendo que gays são inimigos, são adversários. Os torcedores do Corinthians que fizeram isso talvez não saibam, mas estão dando combustível para intolerantes e malucos de toda espécie. Afinal, essas pessoas não precisam de muita coisa para fazer barbaridades. Elas só precisam ter certeza de que isso não é recriminado ou não terá consequências. Até na civilizada Suécia acontece. Um torcedor do Malmö, militante contra a homofobia nos estádios, foi morto por defender direitos iguais para heterossexuais e homossexuais. Já no Brasil, infelizmente, há muitos e muitos casos de violências contra gays. As pessoas apanham nas ruas e são surradas com lâmpadas, como os jornais vêm reportando faz algum tempo.

Portanto, o grito de “bicha, bicha, bicha”, contra o principal jogador da equipe rival, contra o atleta mais controverso do seu adversário, em um estádio lotado, só esquenta ainda mais esse caldo de ódio – mas tão confortável para gente violenta e mesquinha.

A única maneira de mudar essa situação é parar de dizer que gays são piores do que heterossexuais. Não há solução intermediária. É parar de repetir que ser gay é ser ruim. Foi assim que diminuíram os espancamentos e linchamentos de negros. Primeiro, a sociedade conteve as ofensas. Depois, passou a dizer: pare de ofender porque as suas ofensas têm consequências. Nos casos mais graves, passou a criminalizar as ofensas. Foi assim que a Europa conteve o antissemitismo, com leis e medidas contra a intolerância. Mas até a Europa está profundamente atrasada no combate ao racismo e à homofobia, como mostra a faixa bizarra que a torcida do Bayern de Munique estendeu na Alemanha.

Mas leis, a gente sabe, não bastam por si. É preciso que as nossas atitudes mudem, especialmente nos lugares em que essas atitudes podem fazer alguma diferença. Landon Donovan, capitão do Los Angeles Galaxy e principal ídolo do futebol nos EUA, deu um exemplo fantástico e acolheu Robbie Rogers, gay e seu colega de equipe. O futebol é importante demais para a nossa vida, no Brasil. Ele não pode ser tratado como uma parte distante, separada da sociedade. O futebol é encantador porque ele resume, em 90 minutos, as tensões e alegrias de uma vida inteira. O futebol é um amplificador daquilo que acontece nos lugares mais profundos da sociedade e o estádio, uma amostra do que aceitamos e recriminamos. Mas o futebol não precisa ser só uma caixa que reproduz o que acontece fora dele. O futebol pode ser uma ferramenta para a mudança.

Durante muito tempo, ser italiano significava ser sujo. Ser nordestino, vagabundo. Argentino, objeto de botinadas. Porém, os estádios colocaram, lado a lado, agressores e agredidos. Os agressores passaram a ter de aplaudir os agredidos, como aconteceu com os jogadores nordestinos. A aversão de brasileiros a argentinos começou a diminuir quando os gringos começaram a jogar aqui e a mostrar paixão pelos times que amamos. Não é o bastante, longe disso, mas os campos deram passos importantes nas últimas décadas. Os torcedores provaram que não eram reféns do ódio de alguns retranqueiros sociais. Na Alemanha, a torcida do St. Pauli deu um exemplo fantástico em abril de 2013. Levou para as arquibancadas a faixa “Futebol é tudo, até gay”. O St. Pauli foi o primeiro clube que se notícia a ter um presidente que saiu do armário, Cornelius Littmann.

Porém, ainda falta muito para que o futebol se torne, como ele gostaria de ser, um ambiente em que qualquer um pode ser o que quiser. Afinal, uma das coisas que distinguem o futebol de outros esportes é que um Baixinho pode ser um dos maiores artilheiros da história do Brasil e um gordinho, o destaque do último Campeonato Brasileiro. Falta um passo, um passo decisivo. Falta eliminar completamente a violência contra gays e negros. Afinal, quando eles falam, não é para pedir privilégios. Eles querem ser tratados exatamente igual a você. Quando um gay se manifesta, ele ou ela não está pedindo mais direitos. Está pedindo os mesmos direitos que você tem: andar tranquilamente pelas ruas sem correr o risco de apanhar porque está de mãos dadas com a pessoa que ama. Um negro não está pedindo privilégios. Ele quer apenas o direito de não ser julgado pela cor da pele. Ou, no Brasil do começo do século 20, não ser obrigado a passar pó de arroz no rosto para ser aceito como branco.

Combater o preconceito, no final das contas, é uma maneira de contribuir para que o futebol e a sociedade melhorem. Preconceito, afinal, é uma porta escancarada para a violência. Hoje, é contra gays. Amanhã pode ser contra qualquer outra pessoa, por qualquer outra característica. Os judeus, por exemplo, eram muito bem integrados à Alemanha antes do nazismo. A França, embora com um longo passado antissemita, teve um primeiro-ministro judeu antes de colaborar com Hitler na Segunda Guerra. As coisas mudam para pior, infelizmente. Claro, é muito difícil acabar completamente contra o preconceito, é claro. Mas é possível estar atento quando ele aparece e agir a tempo para estancá-lo. É o mesmo movimento do grande craque que sabe se antecipar ao movimento do marcador, driblar o oponente e marcar um baita de um golaço.

Nós, torcedores, somos melhores do que o preconceito. Os retranqueiros sociais não podem vencer esse jogo.

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