Redação Pragmatismo
Rede Globo 06/Fev/2015 às 16:43 COMENTÁRIOS
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A lógica que autoriza a confissão de um homicídio

Publicado em 06 Fev, 2015 às 16h43

O carioca Luan Patrício, de 23 anos, afirmou em rede nacional ter matado um menor de 16 anos no Complexo do Alemão, em 2010, enquanto servia o Exército. Na ocasião, Luan integrava o 8º Grupo de Artilharia que ocupou as favelas da região. O Exército nega que tenha havido qualquer morte em confronto com esta unidade

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Luan Patrício (reprodução)

Ele confessou um homicídio na maior rede de televisão aberta do Brasil. Existe, porém, um contexto específico que autoriza a confissão deste homicídio, porque não é esperado confessar um homicídio para milhões de espectadores. A lógica que autoriza a confissão — ou mesmo invenção — é bastante simples: algumas pessoas podem ser mortas

por José Antônio Gerzson Linck*, em seu Facebook.

Na maior rede de televisão aberta do Brasil há um programa que simula uma espécie de laboratório humano em que a popularidade garante ou impede a permanência do personagem. O objetivo é permanecer no programa. O personagem conta — no ar — que executou uma pessoa. Percebam: ele não poderia contar que executou a mãe. Ele não poderia contar que executou um inimigo pessoal. Ele não poderia contar que executou um desconhecido no shopping. Existe um contexto específico que autoriza a confissão deste homicídio, porque não é esperado confessar um homicídio para milhões de espectadores.

A lógica que autoriza a confissão — ou mesmo invenção — deste homicídio é bastante simples: algumas pessoas podem ser mortas. É por isso que algo aparentemente tão impressionante como confessar um homicídio em rede nacional é utilizado como instrumento de popularidade. Não é apenas uma confissão. É uma confissão que visa popularidade. E a confissão que visa popularidade é a execução de uma pessoa. O assassinato como instrumento de popularidade. Mas não qualquer assassinato, um assassinato onde o personagem exercia uma função pública.

O assassinato como função pública, como função do Estado. É uma técnica de neutralização bastante simples: aquele sujeito merecia morrer, então eu posso confessar. Não há processo, não há inquérito, não há registro. O homicídio não está formalizado em nenhuma agência estatal, justamente porque não precisa. Há uma autorização tácita para execução de tipos sociais específicos que é tão óbvia que legitima uma confissão pública.

O homicídio como criação do personagem tornará ainda mais transparente o contexto político-criminal: se não houve a execução, então deveria ter acontecido, porque é o esperado. O personagem confessa como forma de preencher a função destinada pelo Estado ainda que o assassinato não tenha acontecido. E sem burocracia.

É este imenso oceano de sangue que o garantismo não alcança, porque não é preciso formalizar nada para matar alguém, basta que o Estado seja o responsável. Como instrumento estatal, o homicídio está legitimado. Não há como garantir coisa alguma, não há vigência constitucional na guerra. É este imenso oceano de sangue que o gerencialismo de esquerda considera um “processo”, um “trajeto” rumo a algo que simplesmente não importa, porque nada pode ser mais importante do que a permanência do homicídio como função de Estado que sequer precisa de formalização.

Foi nisto que que o personagem apostou para se tornar popular: executar como função pública em um local específico — o complexo do alemão. Essa hiper-realidade que salta da tela com uma naturalidade impressionante fala muito sobre democracia contemporânea, garantismo penal e gerencialismo de esquerda. Fala tanto quanto um choque elétrico na vagina ou a inserção de arames no pênis de torturados em um porão do DOPS. Fala tanto quanto jogar corpos de aviões ou sequestrar crianças. E de novo, com amplo apoio da população civil. Um governo que não parta deste pressuposto já perdeu contato com qualquer semblante de esquerda.

Não vejam o personagem como um alucinado, vejam ele como alguém tão lúcido que escancara um genocídio que vai matar alguém hoje e vai matar outro alguém amanhã. E depois de amanhã. Vai estuprar, vai sequestrar. Preferencialmente negros, preferencialmente pobres, preferencialmente mulheres. E geral discutindo a Indonésia.

VEJA TAMBÉM: Participante de programa global assume, ao vivo, que espancou mulher

*José Antônio Gerzson Linck é educador e pesquisador no campo das ciências criminais. Não acredita no Estado Democrático de Direito e crê que não há mais diferença entre academia e burocracia. Elegeu a sala de aula como o espaço para aprender e compartilhar emancipação. Texto reproduzido através do sítio Blogueiras Feministas

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