Redação Pragmatismo
Esquerda 06/Set/2013 às 11:44 COMENTÁRIOS
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40 anos do governo Allende

Publicado em 06 Set, 2013 às 11h44

Há 40 anos, mais de meio milhão de chilenos marcharam por Allende. Tratava-se da primeira vitória de um marxista em eleições democráticas. Confira o seu primeiro discurso histórico e a desesperança provocada por sua morte

Maurício Brum, Sul 21

A noite de 4 de setembro de 1970 avançou barulhenta nas vizinhanças da Alameda Bernardo O’Higgins, antiga Alameda de las Delicias, a principal artéria de Santiago do Chile. Durante a manhã e a tarde, o país inteiro havia comparecido às urnas para aquelas que prometiam ser as eleições mais equilibradas da história republicana. Três candidatos disputavam voto a voto a preferência do eleitorado e, para os partidários do socialista Salvador Allende, o lugar de concentração para escutar as notícias vindas pelo rádio era em frente à Federação dos Estudantes da Universidade do Chile (FECH), um antigo casarão de frente para a Alameda e não muito distante do palácio de La Moneda.

O triunfo se confirmou poucos minutos depois da meia-noite. Allende havia arregimentado 36,6% dos eleitores, pouco menos de quarenta mil votos acima do conservador Jorge Alessandri (35,3%), com ambos deixando para trás o democrata cristão Radomiro Tomic (28,1%), que pertencia à corrente progressista do partido de situação, que agora seria obrigado a deixar o governo. A vitória, estreitíssima e longe da maioria absoluta, prenunciava as dificuldades que aguardavam o mandato da Unidade Popular – e nem mesmo o resultado era seguro, pois precisou ser confirmado pelo Congresso cinquenta dias depois, em sessão prevista pela Constituição para definir entre os dois mais votados.

A vitória de Salvador Allende representou o início do que ele prometia ser uma “revolução” por trilhas inéditas, sem pegar em armas (Foto: Arquivo)
A vitória de Salvador Allende representou o início do que ele prometia ser uma “revolução” por trilhas inéditas, sem pegar em armas (Foto: Arquivo)

Embora a tensão tenha se mantido até que os deputados e senadores fizessem sua reunião definitiva, havia nos bastidores um acordo de cavalheiros: Allende e Tomic apertaram as mãos e concordaram que, se derrotados, reconheceriam a vitória um do outro – e articulariam para que os congressistas de seus partidos votassem no adversário. Isso não impediu uma sucessão de violências entre o 4 de setembro das eleições e o 24 de outubro em que o Legislativo confirmou a vitória da UP – incluindo o assassinato do então comandante do Exército, René Schneider, pela ultradireita –, mas por fim a palavra fora cumprida e Allende teve o mandato garantido.

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Na madrugada do triunfo, o candidato socialista discursou desde a sede da FECH para uma audiência que era muito maior do que a representada pelos militantes na Alameda: sabia que sua voz era irradiada para todo o país, sendo escutada com atenção, também, em boa parte do mundo. Tratava-se da primeira vitória de um marxista em eleições livres e democráticas, e o início do que ele prometia ser uma “revolução” por trilhas inéditas, sem pegar em armas. Allende bradava:

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“Nunca como agora a canção nacional teve para vocês e para mim tanto e tão profundo significado. Em nosso discurso dissemos: somos os herdeiros legítimos dos pais da pátria e juntos faremos a segunda independência – a independência econômica do Chile.

“Cidadãs e cidadãos de Santiago, trabalhadores da pátria, vocês, e só vocês, são os triunfadores. Os partidos populares e as forças sociais deram esta grande lição que se projeta mais além, reitero, de nossas fronteiras materiais.

“Peço que voltem a suas casas com a alegria sã da limpa vitória alcançada. E que esta noite, quando acariciarem seus filhos, quando buscarem o descanso, pensem no amanhã duro que teremos pela frente, quando teremos que colocar mais paixão e mais carinho para fazer o Chile cada vez maior – e para fazer cada vez mais justa a vida em nossa pátria.”

* * *

Exatos três anos depois, em 4 de setembro de 1973, restava muito pouco do otimismo daquela noite. A crise enfrentada pelo país havia vários meses parecia já incontornável. Nenhum dos ultimatos dados pelo governo às greves de caminhoneiros, médicos e comerciantes fora respeitado, a inflação continuava a crescer, e os atentados terroristas da extrema-direita continuavam se acumulando como notas corriqueiras nas páginas dos jornais.

Mesmo as boas notícias eram logo apagadas por outras. Roberto Thieme, um dos líderes do grupo extremista Patria y Libertad, tinha acabado de ser preso, em fins de agosto. Mas de que isso realmente adiantava se Allende já percebia que a conspiração estava no seio das Forças Armadas? Em uma reunião com membros da Juventude Comunista, diante da cobrança para que tomasse uma atitude frente ao terrorismo fascista, o presidente se exasperou: “Não é o Patria y Libertad que faz isso, é a Marinha Chilena”.

Não se tratava de uma acusação vazia, mas da constatação de que, nos subterrâneos, armas e informações vinham sendo facilitadas pelo oficialato – não só da Armada, mas também da Aeronáutica e do Exército. No início de agosto, marinheiros de baixa patente haviam denunciado seus superiores por tramar um golpe: mas jamais se estabeleceu uma investigação interna para apurar o ocorrido; ao contrário, foram os delatores que terminaram interrogados e torturados. Oficiais da Marinha também pediram a quebra da imunidade parlamentar dos senadores Carlos Altamirano, do Partido Socialista, e Guillermo Garretón, do Movimento de Ação Popular Unitária (MAPU), que haviam se encontrado com os marinheiros para ouvir suas acusações.

Leal ao presidente, o almirante Raúl Montero estava isolado no comando da Armada: desde o fim do mês havia pressões formais para que pedisse a renúncia em favor de Toribio Merino. No Exército, o constitucionalista Carlos Prats já deixara o comando nas mãos de um aparentemente honesto Augusto Pinochet, enquanto a Força Aérea era regida naquele momento por Gustavo Leigh. Merino, Pinochet e Leigh seriam as cabeças da Junta Militar que daria o golpe.

Ao mesmo tempo, a oposição dava pretextos oficiais para uma intervenção militar: primeiro, negando-se a dialogar com a Unidade Popular; depois, aprovando uma nota em que acusava o governo de violar a Constituição, o que muitos interpretaram como um sinal verde para o putsch. O oscilante Partido Democrata Cristão vira seus nomes progressistas perderem influência. Antes candidato a presidente com ideias não tão distantes de Allende – ainda que sem a pecha de “marxista” –, Radomiro Tomic agora era um nome secundário da sigla. O intransigente senador Patricio Aylwin passou a liderar a bancada democrata cristã.

Renán Fuentealba, ex-presidente do PDC, havia mandado um bilhete a Allende em que alertava: “Não confie em nada da democracia cristã. […] O único problema de Aylwin consiste em como se desfazer de Allende o mais depressa e a um custo menor”. Mas foi do próprio Radomiro Tomic a análise mais precisa do momento vivido pela política chilena, em artigo publicado no jornal La Nación no dia 29 de agosto:

“Seria injusto negar que a responsabilidade de alguns é maior que a de outros; mas, uns mais e outros menos, entre todos estamos empurrando a democracia chilena ao matadouro. Como nas tragédias do teatro grego, todos sabem o que vai ocorrer, todos dizem não querer que ocorra, mas cada um faz precisamente o necessário para que aconteça a desgraça que pretende evitar”.

É pelo fato de o governo estar encurralado de tal forma que o 4 de setembro de 1973 se revestiu de uma transcendência fundamental. Naquele dia, festejando o terceiro aniversário do triunfo nas urnas, uma multidão saiu às ruas de Santiago com o objetivo de demonstrar que seu apoio à Unidade Popular não se abalava pela crise. As estimativas variam enormemente, arriscando qualquer número entre 600 mil e um milhão e meio de pessoas marchando pela Alameda O’Higgins, como se celebrassem indefinidamente as conquistas que agora pareciam ameaçadas.

Não era a única mostra de suporte maciço ao governo: no início daquele ano, mesmo com o país já em dificuldades, a UP havia aumentado o número de representantes no Congresso. Sem novas eleições até 1976, e desconhecendo a ideia de Allende de convocar um plebiscito para definir a continuidade de seu governo, os militares e a oposição assistiram à marcha com desilusão. O La Segunda, vespertino ligado ao jornal El Mercurio e dono de um escancarado discurso de direita, limitou-se aos editoriais rancorosos. O jornal registrou que a mobilização reunira “apenas” 50 mil pessoas e, antes de a marcha acontecer, atacou:

“O desfile será rotatório até que se cansem. Há obrigação de marchar e marchar, sem vacilar, até quando a escuridão caia sobre Santiago. Nessa hora se produzirão dois fenômenos: metade dos esforçados desfilantes se mandará para casa protegida pela noite; a outra metade tratará de criar confusões, assaltar negócios e roubar o que puder”.

Não houve roubos nem confusões de grandes proporções naquele dia. Existiu, quem sabe, um clamor já desesperado para que se negociasse uma saída democrática para os problemas do país. Os militantes não sabiam, mas aquela seria a última marcha a favor de Allende – ao menos enquanto ele estivesse vivo. Dentro de uma semana, na manhã do dia 11 de setembro, o presidente pretendia chamar a população ao plebiscito que, quase certamente, o derrubaria – o governo tinha apoio mas seguia sem maioria absoluta, e o mandatário estava disposto a renunciar se fosse derrotado. Mas Allende também seria pego de surpresa: seu anúncio jamais viria, pois antes se impôs o levante das Forças Armadas.

O escudo nacional do Chile ostenta a frase “Por la razón o la fuerza”. Há 40 anos, o país estava a uma semana de mudar sua história para sempre. Não pela razão das urnas, como pretendia seu presidente, mas pela força das armas, como tramavam seus generais.

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