Luis Soares
Colunista
Ditadura Militar 09/Abr/2013 às 14:51 COMENTÁRIOS
Ditadura Militar

"A noite que durou 21 anos"

Luis Soares Luis Soares
Publicado em 09 Abr, 2013 às 14h51

A noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 foi o começo da escuridão. As sombras da noite de vinte e um anos avançaram mais do que deviam sobre o amanhecer de um país que queria fazer seu futuro

Acabo de ver “O dia que durou 21 anos”, documentário de Camilo Tavares que expõe as vísceras podres da participação dos Estados Unidos no golpe de 64 e na ditadura militar. Converso com amigos, rememorando aquela fase que vivemos e sobrevivemos. O filme, como outros que tratam de diversos outros aspectos do período ditatorial, deveria se visto por muito mais gente do que o público que lotava o pequeno cinema onde passou. E, principalmente, deveria ser visto pelas gerações mais novas que nasceram durante aqueles anos ou depois. Essa história triste não pode ser repetida e, para isso, não pode ser esquecida. Os trabalhos e esforços da Comissão Nacional e das Comissões Estaduais da Verdade, com suas investigações e com os depoimentos tocantemente terríveis de vítimas das prisões e torturas, encontram, nesses filmes, um excelente complemento para trazer à tona o que aconteceu naqueles vinte e um anos.

Tenho apenas um reparo a fazer, quanto ao título do filme: preferia chamá-lo “A noite que durou 21 anos”, pois vivemos, durante aqueles anos, na escuridão da repressão, da censura e do retrocesso. E a noite de 31 de março para 1º de abril de 1964 foi o começo daquele tempo de escuridão.

dia que durou 21 anos

Capa do Filme “O dia que durou 21 anos” (Reprodução)

Durante todo o dia 31 sucediam-se os boatos e as notícias sobre um possível movimento militar. Em Porto Alegre, no início da noite, muitos militantes do movimento estudantil começaram a dirigir-se para o Restaurante Universitário, sede da FEURGS (Federação dos Estudantes Universitários da URGS – naquela época sem o F). Durante toda a noite, reuniões, notícias e, pela madrugada do dia 1º de abril, a confirmação do golpe. A impotência do “perigoso” movimento estudantil pode ser avaliado pela quixotesca tentativa de buscar, nas primeiras horas da manhã, alguns colegas em casa, para ir à Universidade “organizar a resistência”. E o dia da dessa resistência não amanheceu. Tudo estava muito bem preparado pelos militares e políticos coniventes, com o apoio forte e decidido do governo estadunidense, como se pode ver no filme de Tavares.

No início, muitos pensavam que a ditadura iria durar pouco, mas as opiniões mais pessimistas, do longo prazo, revelaram-se acertadas. Foi o início da longa noite e o fim da nossa juventude.

Hoje, tentamos desvendar, lembrar, denunciar, toda a perversidade do processo. As comissões da verdade trazem à luz documentos, depoimentos; as perseguições e as torturas são descritas e são essas as pontas mais visíveis e terríveis (por mais que negadas e sonegadas) do icebergue. O grande corpo de todo o mal que esse período deixou para nossa história também precisa vir à tona.

A ditadura foi eficaz em acabar com todas as tentativas de formular um projeto nacional. Os episódios traumáticos do suicídio de Vargas e da renúncia de Janio, a euforia dos anos JK, foram o pano de fundo do processo de uma nação que se modernizava, questionava sua história e queria agarrar seu futuro. Após a Legalidade, quando as forças retrógradas pareciam ter sido vencidas, no turbulento governo Jango, a crise pareceu transformar-se em grandes oportunidades. O golpe abortou esse futuro e colocou no seu lugar a continuidade da história colonial e a submissão à ordem da guerra fria e dos interesses econômicos externos.

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Acabaram todas as experiências de cultura popular, de organização comunitária no campo ou na cidade, de novas propostas políticas, de novas concepções de educação e de universidade, de uma economia referida aos interesses e às potencialidades nacionais.

Além do esmagamento das organizações de trabalhadores urbanos e rurais, das organizações sindicais e estudantis, a vida política foi truncada. Foram cassadas todas as lideranças de oposição à ditadura (mesmo muitas de perfil conservador, mas formalmente democráticas ou outras moderadamente reformistas). Pior ainda, foi abortado o surgimento, a formação e consolidação de novos líderes, que começavam a emergir nas áreas sindicais e acadêmicas e na política partidária.

Um dos maiores crimes da noite ditatorial deu-se na área da educação. Os novos e revolucionários métodos e concepções que começavam a ser experimentados foram sumariamente extintos e a escola começou o triste caminho de decadência. A concepção de uma universidade criativa, crítica, verdadeiro centro da vida cultural, foi abatida e a instituição passou a ser um pobre simulacro de uma formadora deficiente de profissionais medíocres (com o agravante de intensa repressão às tentativas de reação a esse processo).

Nos anos setenta, no auge da escuridão, a ditadura acende a luz artificial do “milagre brasileiro” e uma minoria beneficiada agrupa-se em torno desse mito, enquanto, no lado escuro, cresce a pobreza e a repressão funcionaliza a morte e a tortura.

Durante essa longa noite, o Brasil povoou outras terras de milhares de exilados. Longos anos roubados do convívio com familiares, amigos, de impedimento de carreiras profissionais (com prejuízo não só pessoal, mas para o país). E sofrimentos, ausências, perdas. Ao mesmo tempo, tivemos o que se pode chamar de “exílio interno”, da enorme multidão que se viu sem vez e sem voz, impotente, com a frustração diária diante de um regime que não admitia a menor tentativa profissional, política ou cultural fora de seus critérios (ou da falta de critérios dos que compactuavam com a ditadura).

Enquanto isso, todos os que nasceram e cresceram durante essa noite autoritária, tiveram sonegados os mais significativos direitos à formação familiar, escolar e social para a cidadania democrática. Basta que imaginemos uma criança que cresce em meio à censura, ao medo e, talvez pior, ao contínuo convencimento de que esse regime de repressão é natural e apropriado. Foram os anos em que a educação para o pensamento crítico foi proibido, porque ele era sinônimo de subversão.
Foi noite e foram trevas. É impossível esquecer. A vida de quem viveu (e sobreviveu) esse período nunca mais foi a mesma. Além dos crimes, das mortes, das torturas, das prisões, das carreiras interrompidas e das sequelas individuais, físicas e psicológicas, que não podem ficar impunes, é preciso que toda a história dessa noite seja desvendada e que se tenha consciência de como ela exerce sua nefasta influência até os dias de hoje.

O período que se convencionou chamar de “redemocratização” poderia ser caracterizado como uma convalescença de uma doença grave, que deixa muitas sequelas.

A anistia “geral e irrestrita” foi arrancada como uma concessão de quem se sentia ainda com muito poder – e usada até hoje para isentar de culpa os responsáveis pelas mortes e torturas.

A transição política foi tutelada, depois a “abertura lenta e gradual”, de forma a impedir um reordenamento partidário democrático, sem as armadilhas e os freios que duraram até a reforma constitucional. Todas as salvaguardas foram adotadas para a sobrevivência do “fantasma” da ditadura. O imprevisto governo Sarney talvez tenha desarticulado um pouco a racionalidade do processo, mas seria certamente mais agravou do que amenizou as sequelas da ditadura.

O que é importante salientar é como esse período de “amanhecer” foi grandemente marcado por sombras da ditadura. Herdamos uma classe política viciada na subserviência, instituições moldadas pelo autoritarismo ausência de políticas públicas e, principalmente um baixíssimo nível de cidadania. Nem o processo constituinte, que mobilizou (e revigorou) alguns setores da sociedade conseguiu sensibilizar a grande maioria da população (propiciando, inclusive, uma rearticulação conservadora no famoso “centrão”), Tudo isso dentro de um quadro inflacionário em um mundo que começava a viver a euforia neoliberal do mercado onipotente. Nenhuma surpresa, portanto, com fiasco da esperada primeira presidência eleita diretamente.

A escuridão da madrugada pós-ditadura custou para dissipar-se. Depois do processo constituinte, um tímido raio de luz foi o impeachment, com o sinal de respeito à legalidade constitucional.

Mas a herança da ditadura continuou marcando a vida política, social e cultural do país, com o aumento da miséria, com o crescimento da violência urbana e a instalação do crime organizado, com o sistema de ensino e a universidade continuando em decadência, com a questão agrária se agravando. Mais ainda, vem à tona a crise ambiental já pressentida a partir da exploração desordenada do território, dos descaminhos do saneamento básico e da degradação das águas.

Mesmo que não se credite ao regime militar a totalidade da responsabilidade por esses problemas, os vinte e um anos de autoritarismo significaram um atraso fundamental no enfrentamento dos mesmos.

As sombras da noite de vinte e um anos avançaram mais do que deviam sobre o amanhecer de um país que queria fazer seu futuro. Foram ainda alimentadas pela hegemonia do neoliberalismo global, traduzido nas privatizações de setores estratégicos, nos anos noventa.

Ainda persistem essas sombras. Quem sabe quantos anos serão necessários, ou quantas gerações, para que elas se dissipem. O efeito das políticas sociais, a implantação de políticas compensatórias, o acesso e o exercício da cidadania plena, a recuperação da criatividade e da consciência crítica, a elevação do nível cultural e intelectual da população e tantos outros elementos de construção da justiça e do bem estar de uma nação, tudo isso não se faz sem exorcizar a lembrança e os efeitos da longa noite.

Luiz Antonio Timm Grassi, Sul21

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