Redação Pragmatismo
Cultura 04/Dez/2012 às 12:29 COMENTÁRIOS
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Luiz Gonzaga: Fugiu de casa e virou rei

Publicado em 04 Dez, 2012 às 12h29

Nascido no sertão de Pernambuco, Luiz Gonzaga completaria 100 anos neste mês de dezembro. Cantou a pobreza e a riqueza de sua terra

Vitor Nuzzi, Revista do Brasil

Esse negócio de matar gente no sertão já foi trabalho mais maneiro. Menos pra eu. Quis matá um home, me lasquei. Levei uma surra tão danada, uma surra caprichada por meu pai e minha mãe, que arribei de casa. Dezoito anos incompletos, 1930. Ingressei nas Forças. Revolução como diabo, tiro como diabo, nunca dei nenhum. Eu queria ser era artista…

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Gonzaguinha viveu longe do pai. Reconciliaram-se em 1980 e fizeram a turnê ‘Vida de Viajante’, 1980/81. (Foto: Arquivo)

Em poucas palavras, o próprio Luiz Gonzaga do Nascimento contou o início da trajetória que o coroaria Rei do Baião. Apaixonado por uma moça de sua cidade – Exu, no sertão pernambucano –, ele tomou umas doses, aditivou a valentia e ameaçou de morte o pai da donzela, que o chamou de “tocadorzinho”. No fim, não matou ninguém e apanhou dos próprios pais, seu Januário e dona Ana, conhecida como Santana. Filho bandido em casa? Nem pensar.

A surra doeu no corpo e na alma: o garoto vendeu a sanfona e se mandou, alistou-se no Exército e ganhou o mundo. Foi ser artista no Rio de Janeiro. Em 13 de dezembro, faria 100 anos. Morreu em 1989, aos 76.

Foi nomeado Luiz com z por ter nascido no Dia de Santa Luzia; Gonzaga por causa do sobrenome do santo Luís; e Nascimento por vir ao mundo no mesmo mês que Jesus. Era o segundo de nove filhos. O pai tinha a rotina dura da roça, mas também era famoso na região – o Sertão do Araripe, quase na divisa do Ceará – por tocar e consertar sanfonas. Dona Santana vendia cordas de sisal na feira e era voz marcante nas novenas. Depois da surra e da fuga, Gonzaga voltou para casa já famoso, em meados dos anos 1940, mas não escapou da bronca.

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Afinal, tinha de respeitar Januário, com quem aprendeu os segredos da sanfona. A história do retorno rendeu justamente Respeita Januário, de Gonzaga e Humberto Teixeira, um dos parceiros mais constantes do cantador, como gostava de ser chamado – um de seus momentos de maior felicidade foi ouvir um “obrigado, cantador” do papa João Paulo II quando cantou para ele, em Fortaleza, em 1980. Da dupla saíram sucessos como Assum Preto, Qui nem Jiló, No meu Pé de Serra, Asa Branca e Baião. O perfil do médico cearense Humberto Teixeira é retratado no documentário O Homem Que Engarrafava Nuvens (2009), produzido por sua filha, a atriz Denise Dumont.

Foi uma série de músicas compostas nos anos 1940 e 1950, época de ouro do baião – gênero desenvolvido, explicou o próprio Gonzaga, a partir da batida dos músicos no instrumento para afinar o violão. O ritmo que invadiu o país do samba-canção perderia espaço na década seguinte, com o surgimento da bossa nova, até que os tropicalistas resgatassem Luiz Gonzaga.

“Luiz Gonzaga colocou o Nordeste no mapa da MPB”, escreveu tempos atrás o crítico e pesquisador Tárik de Souza. “Não foi o pioneiro, porém o mais completo, consciente e talentoso promotor da música regional.”

“Antes de Luiz Gonzaga, não há referência ao forró”, diz o jornalista Assis Ângelo. Garimpador da cultura popular, com 150 mil itens em seu acervo – que aguarda apoio para ser aberto à visitação –, ele enumera: Gonzaga gravou 625 músicas, em 125 discos de 78 RPM, 41 compactos de 33 e 45 RPM e outros quatro, de 12 polegadas. “É o autor mais regravado da música brasileira.” O primeiro disco é de 1941.

A voz demorou um pouco mais para ser ouvida. No início Gonzaga era só sanfoneiro. Chegou a ser proibido de cantar na Rádio Tamoio, por decisão do diretor Fernando Lobo, pai de Edu. Dominava vários instrumentos. “Se eu não tocasse pelo menos violão, eu era engolido pelos cobras. Só tinha cobra no meu tempo”, contou a Assis Ângelo. “Com seu olhar de 360 graus, ele cantava a tristeza, a denúncia e a alegria, através de folguedos populares. A vida brasileira se acha na obra dele, a partir do Nordeste”, define Assis, que dá mais destaque a Luiz Gonzaga no panteão musical brasileiro do que a um Tom Jobim. Argumenta: Tom teve o jazz americano como fonte, Gonzaga buscou na própria terra.

A denúncia estava, por exemplo, em canções como Vozes da Seca, dele e de outro parceiro perene, Zé Dantas: “Seu doutô, os nordestino têm muita gratidão/ Pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão/ Mas, doutô, uma esmola/ A um homem qui é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão”.

E alegria sobrava em pérolas como Lorota Boa: “Dei uma carreira num cabra qui mexeu c’a Maroquinha/ Começou na Mata Grande e acabou na Lagoinha/ Corri mais de sete légua, carregado como eu vinha/ Pois trazia na cabeça um balaio de galinha”.

A terra e a guerra

No norte do estado, a 618 quilômetros de Recife, Exu tem 32 mil habitantes, divididos de forma quase igual entre as áreas urbana e rural. Durante anos, conviveu com guerra entre as famílias Alencar, Sampaio e Saraiva. O exuense Luiz Gonzaga se esforçou para pacificar sua terra, apelando até para o governo federal. E ajudou a levar melhorias à cidade, que foi recebendo luz, energia, telefone e até uma agência do Banco do Brasil. “Tive de convencer o gerente de que ele não seria morto na primeira semana”, afirmou, conforme depoimento publicado no livro de Regina Echeverria.

Em Exu fica o Parque Aza Branca (com “z” mesmo) e o Museu Luiz Gonzaga, na antiga fazenda do cantador. A música mais conhecida do sanfoneiro era também a preferida dele, junto com A Triste Partida, do poeta Antônio Gonçalves da Silva, mais conhecido como Patativa do Assaré.

Gardel e sanfonas

Homem da terra, eternizou o assassinato de seu primo Raimundo Jacó, boiadeiro dos bons, em 1954. Além da composição A Morte do Vaqueiro, Gonzaga ajudou a criar a Missa do Vaqueiro, celebrada a partir de 1971. A temática nordestina não entrou de imediato em sua obra. Na zona portuária e de prostituição do Rio, ele começou tocando boleros, tangos, polcas, valsas. Era apaixonado por Carlos Gardel. Até que, provocado por um grupo de estudantes nordestinos que morava em uma pensão no Rio – entre eles o futuro ministro Armando Falcão, pioneiro em esquivar-se com o “nada a declarar” –, começou a tocar música de sua terra. “A partir dali, ele ganha um estilo próprio”, observa Assis Ângelo.

A inspiração para usar uma indumentária regional veio do músico gaúcho Pedro Raimundo. “O Nordeste existia e precisava de maior atenção. O nordestino se sentia representado por ele, um predestinado a ser garoto-propaganda da região. Foi uma oportunidade dada por Deus”, diz a cantora Anastácia, pernambucana como Gonzaga e chamada de Rainha do Forró. “Foi, sem dúvida, o artista do século para o Nordeste e para o Brasil.” Ela se recorda de Gonzaga como uma pessoa alegre, que gostava de fazer gracejos. “Mas às vezes se fechava no mundo dele, não sei se lembrava daquela pobreza que via… Sentia que ele estava ruminando aquilo, pensando se pudesse mudar.”

Anastácia lembra ainda uma temporada de três meses na qual ela e Dominguinhos, seu marido na épocas e uma das “crias” de Gonzaga, abriam as apresentações em circos, teatros, em tudo quanto era lugar. “Eu cuidava do dinheiro. Várias vezes tinha de dar dinheiro a alguém porque ele falava que a pessoa estava precisando”, conta. Mas ele não ajudava alguém que bebesse – e Assis Ângelo observa que isso vem do trauma da surra que Gonzaga levou dos pais, ainda mocinho. Depois daquilo, nunca mais tomou bebida alcoólica.

O cantador ajudava quem podia, não só com dinheiro. “Distribuiu mais de 200 sanfonas”, diz Assis Ângelo. “E morreu pobre.”

Vindo de São Bento do Una, no agreste pernambucano, o cantor e compositor Alceu Valença lembra que cresceu ouvindo a música de aboiadores, emboladores, cantadores de feira, sanfoneiros de oito baixos, “enfim, em convívio permanente com os elementos que ajudaram Luiz a formatar seu estilo”. Segundo ele, é possível notar na origem da obra de Gonzaga a presença de gêneros como a polca, a valsa e a mazurca, e seu estilo foi formatado a partir de diversas manifestações artísticas e culturais do agreste e do sertão.

“Acho que música brasileira é aquela que se faz aqui e em nenhum outro lugar do mundo. Eu mesmo, eventualmente, já compus rock, já compus blues. Mas sei que, quando faço um blues, estou dando a minha leitura para um estilo de música americano, não é música brasileira. É como ir a um restaurante japonês. Mesmo que o sushiman seja cearense, ninguém vai dizer que aquilo é comida nordestina. Com música é a mesma coisa”, acrescenta Alceu, que diz lamentar quando vê um artista brasileiro trocar “a grandeza da identidade da cultura brasileira” pelo que ele chamada de “pasteurização” da música de mercado.

A reflexão surgiu de uma pergunta sobre um pedido que lhe foi feito pelo próprio Gonzaga, para não deixar o “forrozinho” morrer. Recentemente, Alceu criticou bandas que estariam se escondendo “sob o rótulo de forró”, mas lembrou que o legado de Luiz Gonzaga está acima disso. “Outro dia, num aeroporto, um rapaz se aproximou de mim para dizer que era cantor e compositor. Perguntei qual o estilo da música que ele fazia. O rapaz então me disse: ‘Faço rap, porque parece com a embolada’. Daí eu indaguei: ‘Então, por que não faz logo embolada?’ O Brasil precisa recuperar urgentemente sua trilha sonora. Precisamos ser mais cultos e menos cult”, diz o compositor, que em 1983 gravou com Gonzaga a música Plano Piloto (de Alceu e Carlos Fernando), homenagem a Brasília.

No final deste ano de centenário foi lançado o longa Gonzaga – de Pai pra Filho, de Breno Silveira, o mesmo diretor de Dois Filhos de Francisco (2005). Baseado no livro Gonzaguinha e Gonzagão – Uma História Brasileira, de Regina Echeverria, o filme mostra histórias de pai e filho, a relação muita vezes conflituosa e o reencontro, inclusive musical, no final da vida.

Gonzaguinha nasceu em 1945. Não foi criado pelos pais. O pai artista tinha rotina de viajante e a mãe, Odaleia, contraiu tuberculose – morreu quando o menino ainda era pequeno. Os padrinhos, Dina e Xavier, ficaram com Luizinho, como ele era chamado. Especulou-se muito sobre a paternidade, mas o fato é que o garoto foi registrado por Luiz Gonzaga. Diferentes fisicamente, no pensamento e na personalidade, tiveram convivência difícil. Mas superaram barreiras e conseguiram se aproximar a ponto, inclusive, de fazer um show juntos, entre 1980 e 1981, A Vida do Viajante. O filho conheceu a dimensão da obra do pai, e o pai soube respeitar o trabalho do filho, que morreu em um acidente em 1991, menos de dois anos depois de Gonzagão. Eram artistas da estrada.

Universos que se tocam
Entrevista com Daniel Gonzaga

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Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha. (Foto: Reprodução)

Daniel Gonzaga, 37 anos, segue a linha musical iniciada por “seu” Januário há mais de um século. Como ele mesmo diz, o pai, Gonzaguinha, falava da liberdade, do povo, do desejo de mudança. O avô, certo dia, feliz de vê-lo em cima de um cavalo, em Exu, foi buscar um chapéu e o chamou de boiadeiro. “São dois universos complementares. O urbano e o rural. O político e o ingênuo”, diz. “Dois universos que se descobriram. Se tocam no fim. Uma mistura fantástica.”

No disco Discanço em Casa, Moro no Mundo, Gonzaguinha fala que seu pai era muitas pessoas. Como definir pessoas e artistas tão diferentes? Que lembranças trazem? Eles compõem seu xote relativo (título de uma canção de Daniel)?

A definição, por si, já é fator de limite. Como se traduz uma personalidade? Pela força de seus atos? Quais atos? Acho que trabalhar com arte e sobreviver, seja em 1950, 1980 ou 2012, coisa de gênio. São pai e filho, né? Se anulam e se completam. Meu avô gostava do povo, meu pai também. Meu xote relativo vem, sim, disso tudo e de outros fatores que me colocam na mesma linha de frente, diferente e igual. Soma e divisão.

Que canções você acha que melhor representam Luiz Gonzaga e Luiz Gonzaga Jr.?

Acho que Asa Branca e O Que É o Que É representam um momento deles. E são emblemáticas de cada um.

Pelo que você acompanhou, pai e filho conseguiram uma reconciliação plena?

Com certeza. Meu avô no final da vida estava morando com meu pai em Belo Horizonte. Tudo aquilo já havia ficado para trás. Meu pai ajudava nas festas de fim de ano em Exu e meu avô sabia muito mais da gente do que jamais soubera.

O filme recém-lançado é fiel à história?

Achei o filme bem fiel, sim. Minha reação foi bem doida, porque não dava pra saber se era filme ou a própria vida se desenrolando novamente. Uma emoção muito única.

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