Luis Soares
Colunista
Política 16/Jul/2011 às 01:01 COMENTÁRIOS
Política

Nem a água escapa da privatização em São Paulo

Luis Soares Luis Soares
Publicado em 16 Jul, 2011 às 01h01
A ganância em torno de um dos bens mais preciosos da humanidade
No ano de 2008, a cidade de Guaratinguetá, no interior de São Paulo, via o começo de um processo de privatização de serviços ligados à água e saneamento, viabilizados pelo grande esforço do poder público em abrir caminho para a concessão de um dos bens coletivos mais importantes do planeta.
Há três anos, o Serviço Autônomo de Água, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá (SAAEG) mudou o regime jurídico – de autarquia para empresa de economia mista – e, após instalação de uma parceria público-privada (PPP), tornou-se a Companhia de Serviço de Água, Esgoto e Resíduos de Guaratinguetá (SAEG).
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A justificativa para a mudança e a entrada do setor privado na gestão de água e saneamento era a cantilena de que o poder público não teria condições econômico-financeiras de manter a instituição, principalmente depois das metas estipuladas pela lei federal de saneamento (lei 1.445 de 2007).
De acordo com os defensores do modelo adotado em Guaratinguetá, a PPP permitiria os investimentos necessários para atingir as metas de saneamento básico e desoneraria o poder público que, mesmo contando com os “aportes” e “qualificação técnica” vindos da iniciativa privada, não perderia o controle sobre os recursos. Contudo, mais uma etapa da “sociedade” na área de bens públicos estratégicos estaria por vir.
Água concedida
No último dia 1º de junho, o prefeito de Guaratinguetá, Junior Filippo (DEM) anunciou encaminhamento, à Câmara Municipal da cidade, de um projeto de lei que solicitava autorização legislativa para a concessão do serviço de água no município. A alegação era de que a capacidade de investimento de Guará é baixa, por isso a decisão de estreitar relações com o setor privado. No dia 30 de junho, em sessão ordinária, os vereadores votaram e aprovaram a proposta “em regime de urgência”. A próxima etapa está nas mãos do Executivo.

Com essa concessão, a SAEG passará a cuidar especificamente da implantação e manutenção dos sistemas de drenagem de águas pluviais, além de continuar como gestora da coleta de lixo, da PPP do esgoto e da concessão da água. Isso não é o mesmo que dizer que o poder público fará a gestão direta dos recursos hídricos. Ao contrário, tal tarefa ficará a cargo da empresa que ganhar a concessão, com prazo inicial previsto de 30 anos de duração, prorrogáveis por mais 30 e assim por diante. Por si só, três décadas de gerenciamento por uma empresa particular já conformam, de fato, a privatização da água.

O projeto gerou impactos na cidade e causa discussões e mobilizações, tanto físicas quanto virtuais. Na internet, não é incomum encontrar manifestos contra a medida da Prefeitura e a aprovação pelos vereadores – que foi acompanhada de fortes protestos na sessão do dia 30. Nos blogues, o debate se dá baseado no eixo de que a água é um bem estratégico e que estudiosos do tema apontam para a necessidade da gestão sustentável, mirando o bem de todos e não os interesses de um grupo privado.
Inspiração 
Desde maio deste ano, o Saneamento Ambiental de Atibaia (SAAE) também deseja promover mudanças no modelo de gestão. Idêntica a de Guaratinguetá, a justificativa se baseia na necessidade de captar recursos da iniciativa privada para atingir metas que o poder público local, em tese, não seria capaz. A autarquia pretende alterar o regime para empresa pública, podendo instalar, como em Guará, uma PPP. Aliás, o modelo da SAEG é cantado em prosa e verso pela atual administração atibaiense como solução.
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O tema, de importância central para a população, não foi aberto à sociedade, mas o projeto já chegou à Câmara Municipal para ser apreciado pelos vereadores. Nesta semana, antes de qualquer chamado para audiências públicas e atropelando o tempo que deveria ser direcionado a estudos minuciosos e debates amplos, a Prefeitura, que está sob o comando do vice-prefeito, Ricardo dos Santos Antonio (PT), em exercício por conta do licenciamento temporário de José Bernard Denig (PV), solicitou sessão extraordinária no Legislativo, em pleno recesso parlamentar, para votar a proposta.

Vários questionamentos estão postos no caso. Eles começam em preocupações dos funcionários e se estendem aos consumidores. As garantias trabalhistas dos servidores, com a mudança de regime, são fonte de questionamentos. Embora a direção da empresa afirme que nada vai mudar para quem fez carreira na empresa no atual modelo, a transformação coloca condições diferentes nas relações de trabalho, ameaçando empregos e direitos adquiridos.
Sobre as relações de consumo, se deixar de ser uma autarquia, o SAAE perderá a isenção de diversos impostos, como PIS e Cofins, ligados à seguridade social. A questão é: a diferença será ou não repassada para as contas dos munícipes?
Em Guará ou Atibaia, trabalhadores sem garantias
Na questão da alteração de regime jurídico, a Súmula 390, do Tribunal Superior do Trabalho (TST) classifica da seguinte forma a questão da estabilidade:
“I O servidor público celetista da administração direta, autárquica ou fundacional é beneficiário da estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal de1988.
II – Ao empregado de empresa pública ou de sociedade de economia mista, ainda que admitido mediante aprovação em concurso público, não é garantida a estabilidade prevista no art. 41 da Constituição Federal de 1988.
Ou seja, ainda que SAAE ou SAEG incluam qualquer cláusula nas propostas, as regras previstas em esferas superiores à municipal transformariam as medidas em ações inconstitucionais, permitindo que as empresas demitam trabalhadores mesmo concursados.
Drenagem: ponto mais que preocupante
A drenagem – hoje, de responsabilidade da Prefeitura de Atibaia, mas prevista na proposta de mudança do SAAE, no projeto de lei complementar 007, de 4 de maio de 2011 – é mais que preocupante, já que a ampliação da rede exige um investimento alto que, segundo análises, custaria três vezes mais do que o tratamento de esgoto (hoje, o SAAE tem previsão de investimento total de R$ 60 milhões com esgoto, portanto, o custo com drenagem chegaria a R$ 180 milhões). Na Prefeitura, já se pensa num cronograma e são feitos estudos e cálculos para decidir como a drenagem será repassada à empresa.
Nesses cálculos, por conta do alto custo da drenagem, claro que o consumidor está incluído. Afinal, a previsão de grande acréscimo nos gastos do SAAE com a assunção da nova responsabilidade e, sabendo-se que a iniciativa privada só entra em negócios com perspectivas de altos lucros, não restam dúvidas de que uma das fontes de recursos será o dinheiro dos contribuintes.
O elo conhecido 
O relacionamento entre as administrações de Atibaia e Guaratinguetá não se restringe apenas a tomar como base a proposta da SAEG. Na verdade, a mesma empresa que hoje é a parte privada do saneamento de Guará, é quem fez o projeto para viabilizar uma PPP no SAAE. Constituída em 2006, pelo Grupo Galvão, a Companhia de Águas do Brasil (CAB Ambiental) é o elo conceitual dos dois projetos.
São relações estreitas, portanto. E, da forma como caminham, podem levar Atibaia e Guaratinguetá até o mesmo ponto; o de ver o interesse privado vencer o público em mais um capítulo do embate onde o individual tem prevalecido sobre o coletivo.
Exemplo que causou revolta 
Um exemplo mal sucedido – para o interesse coletivo, óbvio – de controle da água nas mãos de grupos privados ocorreu no final dos anos 90, com a gigante multinacional Bechtel, sediada nos Estados Unidos, cuja receita anual gira em torno de 20 bilhões de dólares. A empresa assumiu o controle do fornecimento de água de Cochabamba, na Bolívia, com contrato de 40 anos.
O aumento dos preços que se seguiu causou uma revolução entre os habitantes do local, cuja sobrevivência depende de que a água seja barata e, no ano 2000, a Bechtel teve que se retirar das terras bolivianas.

Publicado originalmente no Nota de Rodapé.

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